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RaffaelloSanzio - Madonna(detalhe-anjo) - 1513/14
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Sermão sobre a Montanha - Beatitudes
Transcrição
(Jean-Yves Leloup - Tradução de Karin Andrea de Guise)
...Antigamente não havia cerca em volta. Mas, estar em marcha, estar a caminho é também atravessar os obstáculos, é ver através da cerca. Então, foi aqui que Jesus pronunciou o famoso Sermão da Montanha em que ele deu aos seus discípulos não uma lei, mas uma relação.
Moisés transmitiu a lei, orientou o desejo. Jesus transmitiu uma oração, uma maneira de permanecer em todo lugar, em todo tempo, na presença daquele que chamava de seu Pai e essa será a oração do Pai Nosso e nós teremos ocasião de meditarmos essa oração em hebraico, em aramaico, em grego.
Tudo isso para dizer que, para Jesus, a beatitude é permanecer no coração dessa relação, permanecer no amor de Deus, no Sopro que ele nos comunica. E nós meditaremos as Beatitudes em grego e em hebraico.
“Bem-aventurados os pobres de espírito porque deles será o reino dos céus”. Em hebraico quer dizer: Em marcha, os humilhados de Sopro, aqueles cujo sopro foi cortado! Pois lembrem-se que a palavra “Espírito” que está no texto é a palavra “Pneuma” que quer dizer o Sopro. Quando temos o Sopro pobre, quando temos o Sopro cortado, as palavras também são cortadas.
Isso acontece muitas vezes quando temos emoções e não podemos mais respirar. De certa forma, Jesus disse: Em marcha, emotivos! Não se deixem parar pelas suas emoções. Não permaneçam com o Sopro cortado. Invoquem esse grande Sopro da Vida: o Espírito Santo. Invoquem o Seu Reino no interior de vós e assim vocês poderão continuar.
Em marcha, emotivos! Em marcha, aqueles que têm dificuldade de respirar. Em marcha, os angustiados! A palavra angústia quer dizer a passagem fechada. Não é ruim estar angustiado. Não é ruim ser emotivo. Não é ruim ter o Sopro curto, mas Jesus nos convida a não nos deixarmos parar por isso, nos convida a irmos mais longe. A caminho, aqueles que choram, pois eles serão consolados!
Na tradição hebraica, isso deveria ser traduzido: Em marcha, aqueles que estão fazendo o seu luto! Se não fizermos o nosso luto não poderemos ir mais longe. E o que é fazer o seu luto? É aceitar que o passado é passado. Que aquilo que foi jamais será. É a própria condição para sermos felizes, para apreciarmos o momento que nos é dado. Se não fizermos o nosso luto, o passado se projetará sobre o presente. E nos tornaremos incapazes de saborear o momento presente. E fazer o luto de quê? Isto depende de cada um. Para alguns é fazer o luto de uma pessoa amada, de uma criança, de um pai, de uma mãe, ou de alguém muito próximo.
Como dizíamos agora há pouco na igreja, aquilo que conhecemos sobre uma determinada forma não devemos repeti-lo da mesma forma. Trata-se de descobrir uma outra forma de relação com aqueles que não mais estão junto de nós.
Talvez tenhamos que fazer o luto por uma determinada situação, por um lugar, Talvez de uma imagem de nós mesmos. Em marcha, aqueles que estão fazendo o seu luto, aqueles que aceitam que o passado seja passado! Então, eles podem realmente saborear o presente.
Mas se não fizermos o nosso luto, se não aceitarmos que o passado é passado, incessantemente, algo nos fará voltar para trás.
Eu penso numa amiga que veio em peregrinação às margens de Tiberíades. Ela havia perdido a sua neta. A lembrança dessa criança era como um peso que a impedia de avançar, que a puxava sempre para trás. E, ao longo dessa peregrinação, ela compreendeu que a sua neta não era uma bola de ferro que a puxava para trás, mas uma estrela que a fazia caminhar para frente.
E este também é o sentido da peregrinação para Compostela. Vocês sabem que na palavra “compostela” há a palavra “compost” que quer dizer decomposto, cemitério e “stela” - estrela. E esse é o paradoxo: Como transformar o decomposto em uma estrela? Como fazer do nosso caos uma estrela? É através da sensação daquilo que é. Aquilo que foi não é mais. É preciso viver esse amor no presente. E isso, muitas vezes, não acontece sem que derramemos algumas lágrimas. E devemos nos lembrar dessa beatitude relativa às lágrimas, pois existem lágrimas de tristeza, de dor, mas existem lágrimas de maravilhamento, de alegria.
E os antigos monges pediam incessantemente o dom das lágrimas, pois o maior perigo é ter o coração duro, o coração fechado. E aqueles que são terapeutas entre nós sabem muito bem que quando alguém consegue chorar, tudo melhora. Há algo que se relaxa e que é limpo, mas essas são as lágrimas psíquicas.
Mas existem também lágrimas espirituais, quando estamos diante da presença da beleza e do amor de Deus. Muitas vezes, as lágrimas correm em nós. Como dizia Jesus a Samaritana: De seu seio correrão fontes de água viva.
E isto não é apenas uma bela metáfora, é também uma experiência. Por isso, não se surpreendam se, em alguns momentos, quando estiveram sozinhos na natureza - talvez às margens do lago, hoje à noite –, venham as lágrimas. E essas lágrimas são realmente uma benção, pois não somente lavam os olhos mas também lavam o coração. E os antigos diziam: “Se você foi batizado nas águas, mas se não foi batizado nas suas lágrimas, o seu batismo de nada vale”. É um batizado apenas externo.
Trata-se de mergulhar no alimento líquido que está no interior de nós mesmos. Reencontrar esse coração líquido. E através do dom das lágrimas, esse é o sinal da presença de Deus em nós.
Vocês podem perceber que as lágrimas psíquicas fazem os olhos incharem. E temos os olhos vermelhos. Mas as lágrimas espirituais não fazem inchar os olhos. Pelo contrário, elas lavam os olhos. Então, em marcha aqueles que choram! Em marcha, aqueles que estão fazendo o seu luto!
Em marcha, os mansos, pois eles possuirão a terra! A terra não é dada aos violentos. É por isso que os antigos índios diziam: Caminhe suavemente pela terra, pois ela é sagrada.
Ela é como um corpo humano. Ela resiste à violência, ela se fecha à violência. Ela somente pode se dar à mansidão. Nessa beatitude existe toda uma dimensão ecológica. E devemos respeitar a Terra, ser doce e manso com ela. E aqueles que estão nesta doçura herdarão a terra, a Terra se dará a eles. Se vocês caminharem suavemente sobre a Terra, sobre o caminho, vocês poderão sentir docemente a sua presença. Se vocês observarem suavemente uma árvore, uma flor, ela poderá lhes dar algo de sua presença. Fazer as coisas com mais mansidão. Não é fazer as coisas mais lentamente, mas é fazer as coisas mais conscientemente, com mais presença. Então, o presente da vida poderá se dar a nós. Em marcha, os mansos!
Em marcha, aqueles que têm fome e sede de justiça! Para os antigos a justiça é harmonia. É como a nota justa, uma música justa.
Devemos nos ajustar à realidade e também devemos dar a cada um aquilo que lhe é devido. Como dizíamos no deserto, dar a Deus aquilo que lhe é devido é dar-lhe adoração. É saber reconhecê-lo como a fonte de nosso ser e de todo ser. É saber também dar ao outro, ao nosso próximo, aquilo que lhe é devido. E também dar a nós mesmos aquilo que nos é devido. É respeitar a vida que está em nós. Bem-aventurados aqueles que têm fome e sede de justiça! Que tem fome e sede de harmonia!
Em marcha, os corações puros! E o que é um coração puro? Eu creio que é um coração que está sem projeções. Nós não nos conhecemos uns aos outros. Nós nos conhecemos através das nossas memórias, das nossas lembranças, através das nossas repulsas e atrações. É preciso que o nosso coração seja purificado e limpo de todo o temor e de toda a expectativa para conhecermos as coisas tais e quais elas são.
Bem-aventurados os corações puros, pois eles verão Deus! E ver Deus é ver a realidade tal e qual ela é. Como diz Jesus nos Evangelhos: o que é, é; o que não é, não é. E tudo o que dizemos a mais, isto vem do mentiroso. Alguns traduzem: “Isto vem do mental”. Devemos ver a realidade tal e qual ela é.
A primeira Epístola de São João nos diz que veremos Deus tal e qual Ele é; não como nós o pensamos, não como nós o imaginamos, não como nos ensinaram, mas como Ele é. E nós nos tornaremos parecidos com Ele. Apenas Deus pode conhecer o Deus em nós. Apenas o nosso silêncio pode conhecer o silêncio do Absoluto.
A questão é: Como ter o coração puro? Eu penso em uma imagem (?) “Nós não bebemos champagne dentro de um penico”, pois a champagne vai ter um gosto ruim. Quando falamos de amor é o amor que colocamos em nosso coração e que pode se assemelhar a um penico. Ele tem o gosto do nosso ego, dos nossos ciúmes, da nossa vontade de possuir, do nosso medo de perder.
Para sabermos o que é o amor é preciso ter o coração puro. Mas é preciso toda uma vida para aprendermos a amar.
É por isso que Jesus disse: “Em marcha, um dia você amará!”. Jesus jamais disse: “Amarás!”. Não é uma ordem. Não é um dever. Isto é uma esperança. Hoje, talvez você ame pouco no seu coração, mas um dia você amará como todo a sua inteligência, com todo o seu coração e com toda a sua força. Você amará por inteiro e isto é uma esperança, é um caminho, é um vir a ser. E estar em marcha é, a cada dia, purificar-se um pouco mais. É limpar o nosso cálice.
É melhor falar do Graal do que do penico. Mas é a mesma questão. É preciso limpar o cálice de tudo aquilo que está dentro dele para saborearmos o néctar que deve ser vertido lá de dentro. A busca do Graal é a busca do nosso coração. É o cálice que pode conter o amor, que devemos purificar incessantemente. Em marcha, aqueles que purificam o seu coração, pois eles conhecerão o amor e verão Deus!
Em marcha, os misericordiosos! Andre Chourraqui traduz: “Em marcha, os matriciais!”. Vocês conhecem esta palavra “matricial”? Não basta ter apenas um coração, mas é preciso ter também um ventre, uma matriz. Ter entranhas, entranhas de misericórdia. Você deve amar todos os seres como uma mãe ama os seus filhos. Isso é a misericórdia, a compaixão. Não basta ter um espírito claro, um coração amoroso. É preciso ter também entranhas, essa sensibilidade do corpo que nos permite acolher o sofrimento, mas também a alegria do outro. Não é apenas um amor sentimental, mas é um amor encarnado.
Os japoneses e os chineses falam do hara. É a importância de ter um centro vital. Em marcha, aqueles que têm entranhas! Isto significa ser capaz de misericórdia, capaz de compaixão. Existe aí uma felicidade profunda.
Um dia, o Dalai Lama me disse que nós poderíamos passar sem religião, mas que não poderíamos passar sem compaixão. É exatamente isso que diz Jesus. A sua religião vale pela compaixão que vocês nela colocam, porque esta compaixão e esta misericórdia é uma participação na vida de Deus. Aquele que não ama, segundo o Evangelho de João, não conheceu Deus. Aquele que ama permanecerá em Deus e Deus permanecerá nele. É isso é muito fácil de compreender, mas é preciso toda uma vida para descobrir. “Em marcha!” é todo um caminho. É um caminho de descoberta. A beleza e a grandeza da compaixão.
Em marcha, os artesãos da paz! Ele emprega a palavra “artesãos”. Ele não emprega a palavra (?). Muitas vezes, hoje em dia, quando falamos de paz, falamos de uma forma muito geral, muito bela, mas nem sempre muito concreta. O artesão é alguém que faz algo do início ao fim. Quando estamos em uma indústria, nós fazemos pedaços de uma coisa, nós não fazemos nenhum objeto por inteiro.
E aqui encontramos a etimologia da palavra paz - shalom em hebraico - que quer dizer ser inteiro. Nós não estamos em paz porque não somos inteiros. Existem elementos do nosso ser que estão faltando. Para alguns é o elemento espiritual; para outros é o elemento intelectual; para outros é o elemento afetivo; para outros é o elemento carnal. Para estarmos em paz devemos estar inteiros. E para nós tornarmos inteiros é preciso um trabalho de artesanato, um trabalho de paciência.
E eu penso em um antigo rabino de Jerusalém que me dizia que o Messias não pode chegar enquanto a paz não for feita entre os diferentes quarteirões de Jerusalém. Mas, ainda mais profundamente, haverá a paz nos diferentes quarteirões de Jerusalém, quando tivermos feito a paz entre os diferentes quarteirões dentro de nós mesmos.
Quando formos a Jerusalém nos perceberemos que cada quarteirão tem um cheiro e que, muitas vezes, existem fronteiras invisíveis. E, muitas vezes, não existe comunicação entre pessoas que vivem muito próximas umas das outras.
E como eu fiquei surpreso ao ver isto, um velho rabino me disse: Olhe dentro de você mesmo e veja se a sua cabeça está se comunicando bem com o seu coração. Observe se o seu ventre está se comunicando com a sua cabeça. Observe os seus diferentes quarteirões: Será que eles estão em paz uns com os outros? É por aí que devemos começar.
É como o jovem Davi que uma noite recebeu um sonho. E Deus lhe diz neste sonho: Davi! É preciso que você salve o mundo! E ele responde: Sim, senhor! Mas o mundo é grande. Por onde eu devo começar? Talvez eu deva começar pelo meu país. Mas o meu país é grande - sobretudo se é um país como o Brasil. Talvez eu deva começar pela minha região, mas a minha região é grande. Talvez eu deva começar pela minha cidade, mas a minha cidade é grande. Bem, então eu vou começar pelo meu edifício. Pouco a pouco, Davi vai voltando para o seu quarto.
Então, começar a fazer a paz no mundo é começar a colocar ordem no seu quarto. Colocar ordem e paz no seu próprio mundo. Sobretudo colocar ordem e paz no seu próprio coração. A paz é um artesanato e o artesanato começa com as coisas mais simples e concretas do cotidiano.
Se houver paz - um pouco de paz - no nosso espírito, haverá um lugar onde haverá paz no mundo. Não um discurso sobre a paz, mas uma paz verdadeira. Se houver um pouco de paz no nosso coração, haverá um lugar no mundo onde haverá paz. Isto não é apenas a mística, não é apenas poesia. Isto é física. Não podemos arrancar um pedaço de grama, sem que perturbemos uma estrela. Todo homem que se ergue, erguerá o mundo. Toda pessoa que, artesanalmente, fizer a paz em si mesma, na sua família, entre os seus próximos, estará realmente colaborando para a paz no mundo.
E vocês conhecem o trabalho de Rupert Sheldrake sobre os campos morfogenéticos. Ele nos lembra que tudo está interligado. E isto quer dizer que a paz começa no interior de nós mesmos. A paz no mundo começa pela paz nos nossos pensamentos, no nosso coração, nas nossas ações.
Em marcha! E esse também é todo um caminho. Nós não podemos falar de paz se não estivermos em paz em nós mesmos. E se vocês perceberem, quase todos os lugares em que falamos de paz, muitas vezes, são lugares que estão em conflito.
Yerushalaim quer dizer a cidade da paz. E vocês sabem o que se passa em Jerusalém. Há, ao mesmo tempo, o conflito, mas há também alguns artesãos: os homens e mulheres de boa vontade. A paz que está em marcha.
E chegamos assim à última beatitude que pode parecer estranha: “Bem-aventurados os que são perseguidos em nome da justiça”. Em marcha, aqueles que têm provações a serem atravessadas! E por que aqueles que vivem perseguições em nome da justiça são declarados bem aventurados? Porque eles podem fazer a experiência de Jesus quando ele fala a respeito do amor aos inimigos. Amar seus inimigos não é um amor natural. O natural é amar seus amigos. E, às vezes, também é difícil, mas devemos começar por aí. E se conseguirmos amar nossos amigos, o coração se abrirá. E, muitas vezes, seremos capazes de amar aquele que não nos ama, ou aquele que nós não amamos.
E esse amor não é um amor físico, não é um amor humano. É um amor divino em nós. Há psicanalistas entre nós que sabem que amamos para sermos amados. Isto é natural. Mas, algumas vezes, podemos amar aqueles que não nos amam. E este é o sinal da presença de Deus em nós.
Quando perguntei ao Padre Serafim: Quando eu posso ter certeza de que o Espírito Santo está em mim? Ele me disse: É quando você ama os seus inimigos, porque existem maus espíritos que podem fazer milagres, curar os doentes, mas nenhum mau espírito pode amar os seus inimigos. Apenas o Espírito Santo. Apenas o coração de Deus.
E quando eu perguntei: Onde está a verdadeira Igreja? Porque os católicos romanos dizem que esta é a verdadeira Igreja. Os pentecostais dizem que a deles é a verdadeira igreja. Os evangélicos dizem que a deles é a verdadeira igreja. Os ortodoxos também. Cada um tem a tendência de dizer “A verdade está comigo”. E ele me disse: A verdadeira igreja é lá onde amamos os nossos inimigos. Lá onde somos capazes de amar o outro na sua diferença.
E é necessário amar o inimigo no interior de nós mesmos. Tudo aquilo que não é aceito, não é salvo. Há lugares e há coisas em nós que não amamos. Existem sombras a serem aceitas. Enquanto as recusarmos, elas se fortificarão. Apenas aceitando-as, elas poderão se transformar.
Então: Bem-aventurados, aqueles que amam os seus inimigos! Aqueles que não têm medo de não serem amados. Aqueles que não têm medo de serem caluniados ou perseguidos, pois eles descobriram em si a grande liberdade: a liberdade do amor que ama de uma maneira incondicional. E esta é a presença do Cristo no interior de nós.
Mas este é um caminho. E, talvez, ainda não tenhamos chegado. Ainda não conhecemos esta liberdade e esta felicidade. Mas estamos em marcha em direção a isso. E nós podemos pedir ao Espírito que soprou sobre esta montanha que nos inspire no nosso caminho para que possamos aprender a amar. Para que possamos aprender a fazer o luto do nosso passado para melhor vivermos o presente. Não ter medo das nossas emoções(?) a atravessar. Atravessar os nossos medos.
Desenvolver em nós essa pureza e essas entranhas de compaixão. Que nós todos nos tornemos artesãos da paz e que o mundo no qual vivemos torne-se um pouco mais sereno, que tenha um pouco mais a manifestação do bem-aventurado que mora dentro de cada ser. E nós podemos orar alguns instantes e que Jesus escute a nossa oração.