O tormento de Otelo Descrito na obra de William Shakespeare como o "monstro de olhos verdes", o ciúme congrega sentimentos contraditórios. Influenciado por valores culturais, inspira pintores, compositores e escritores - mas também pode se transformar em doença por Eduardo Ferreira-Santos | ||
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Em Fragmentos de um discurso amoroso, Roland Barthes escreve: "Como ciumento sofro quatro vezes: porque me reprovo por sê-lo, porque temo que meu ciúme machuque o outro, porque me deixo dominar por uma banalidade; sofro por ser excluído, por ser agressivo, por ser louco e por ser comum". As palavras do escritor e filósofo francês revelam contradições e multiplicidades desse sentimento polimorfo - ou melhor, de um conjunto deles tão presente no psiquismo humano.
É possível entender o ciúme como uma manifestação do ser humano, tão normal quanto a raiva, o medo ou a inveja. Há, entretanto, fatores a considerar: a origem do sentimento, sua intensidade e duração, a maneira como a pessoa que o sente reage, a importância que assume no cotidiano e interferências que provoca não apenas na vida do ciumento, mas na daqueles que o cercam.
Se para uns surge de forma esporádica, como reação a determinado fato, em outros pode ser considerado traço de personalidade - são esses os ciumentos que, em geral, reconhecem a característica em si em vários momentos da vida, embora nem sempre lidem bem com ela. Em algumas pessoas o sentimento se configura como sintoma. Situações de crise, circunscritas a um determinado período, não se caracterizam necessariamente como processo patológico. Nesses casos, o sujeito costuma apresentar labilidade e descontrole emocional: antigos fantasmas o assombram, levando-o a confundir situações atuais com traumas vividos ou imaginados.
Estudo mostra que pessoas inseguras e com baixa auto-estima são mais propensas a crises de ciúme
O conhecimento psicanalítico provocou profundas transformações na forma de compreender o homem contemporâneo; e é nesse conhecimento que estão ancoradas a psicologia e as diferentes linhas psicoterápicas atualmente praticadas. Nem todos se dão conta, porém, de que na origem delas há importante contribuição do ciúme, ainda que indireta.
No fim do século XIX, o jovem Sigmund Freud, recém-saído da faculdade de medicina, foi estimulado pelo clínico vienense Joseph Breuer a levar adiante suas pesquisas. Vários pacientes do médico experiente sofriam de afecções nervosas e, entre eles, estava a bela e culta Bertha Pappenheim, que passou para a história com o codinome Anna O. Diagnosticada como histérica, ela apaixonou-se por Breuer e passou a enviar-lhe quase diariamente flores e outros presentes. Em momentos de confusão mental, insistia que o médico a tinha engravidado. A situação, bem como o tempo que Breuer dedicava à moça, despertaram a irritação de sua mulher. Enciumada, ela exigiu que o marido parasse de atendê-la.
Para contornar o impasse, ele encaminhou a paciente para Freud, com quem o encantamento se repetiu. Mais tarde, em sucessivas ocasiões, a jovem voltou a se interessar pelos médicos que a atendiam. A repetição foi percebida, estudada e descrita na teoria freudiana como transferência, um conceito que abriu campo para o direcionamento do atendimento psicanalítico.
Em 1922, mais de duas décadas depois, Freud escreveu: "Embora possamos chamá-lo 'normal', o ciúme não é, em absoluto, completamente racional, isto é, derivado da situação real, proporcional às circunstâncias reais e sob controle do ego consciente; pode achar-se profundamente enraizado no inconsciente, ser uma continuação das manifestações da vida emocional da criança e originar-se no complexo de Édipo ou nas relações entre irmãos do primeiro período sexual. Além do mais, é digno de nota que, em certas pessoas, ele é experimentado bissexualmente - o homem não apenas sofrerá pela mulher que ama e odiará seu rival, mas sentirá pesar pelo homem a que ama inconscientemente e pela mulher, sua rival".
Por causa do ciúme da esposa, o clínico vienense Joseph Breuer encaminhou a paciente Anna O.(foto) para o jovem Sigmund Freud
Novos Otelos
Um dos temas mais discutidos durante a conferência do Colégio Real de Psiquiatras, na Inglaterra, em julho de 1992, foi a "síndrome de Otelo". O protagonista da obra de William Shakespeare inspirou compositores como Antonin L. Dvorak (que criou uma abertura para a montagem), Giuseppe Verdi e Gioacchino Rossini, o pintor romântico Eugène Delacroix e, mais recentemente, o cineasta Franco Zefirelli, além de tantos outros. No drama inglês, o mouro de Veneza estrangula sua mulher, Desdêmona, desesperado pela desconfiança de ter sido traído. Depois do assassinato, crava o punhal no próprio peito. A mulher, porém, não cometera adultério. Cego de ciúme e influenciado pelo invejoso Iago, Otelo se deixa levar pelo que considera ser prova da infidelidade da mulher.
O psiquiatra Dinesh Bhugra, professor do Instituto de Psiquiatria de Londres, coordenou durante o evento um treinamento específico para o atendimento de "Otelos". Segundo ele, nas últimas quatro décadas a literatura vem registrando inúmeros pacientes que podem ser enquadrados nessa categoria. É possível que o maior número de casos nos consultórios tenha a ver com o estranhamento que determinados sentimentos desconfortáveis provocam, bem como o desejo de aplacá-los, em nome de uma vida psíquica mais saudável. É provável que sociedades capitalistas, marcadas por competição, tensão e desemprego inerentes ao modelo econômico vigente tornem as relações afetivas mais tênues, por um lado, e mais sujeitas ao rebote do efeito social frustrador, por outro. Como se fosse um mecanismo de deslocamento, o indivíduo que se vê em constantes embates internos e externos, em busca da realização de anseios de consumo e posse, transfere essa tensão para o relacionamento, concretizando, na esfera particular, sua raiva e agressividade.
Quando o ciúme deixa de ser uma manifestação tolerável? O sofrimento psíquico talvez seja uma medida adequada - embora subjetiva -, já que anuncia quando a situação passa a causar mal-estar intenso, repetindo-se de forma obsessiva (invadindo pensamentos) e compulsiva (na qual o indivíduo passa ao ato, sem controle de suas ações), até comprometer aspectos da vida da pessoa.
Sem Fim
Em seu polimorfismo, o sentimento adquire contornos de cada época e cultura. Os critérios para caracterizá-lo como doença são sutis, principalmente em situações limítrofes, nas quais vários quadros patológicos podem se sobrepor. Muitos não conseguem imaginar o ciúme dissociado de sentimentos amorosos. Em alguns meios, é considerado uma contingência do afeto: aquele que não o desperta duvida da veracidade do sentimento do outro, como se fosse uma "prova de amor". Há pessoas que se empenham em chamar a atenção do parceiro e despertar seu interesse tentando deixá-lo enciumado. No Brasil, um dos reflexos dessa "normalização" do ciúme se reflete nos raros estudos acadêmicos sobre o tema. A herança judaico-cristã contribui para perpetuar essa postura. Em outras sociedades a visão é bem diversa. Para o americano moderno, por exemplo, identificado com a postura liberal, defensor ferrenho dos direitos individuais e da política de não-intervenção nos assuntos íntimos (pelo menos em tese), a pessoa a quem se dirige o ciúme se sente invadida, como se tivesse seus direitos desrespeitados.
Os americanos Gordon Clanton, sociólogo, e Lynn Smith, psicóloga, pesquisam o assunto levando em conta transformações culturais e sociais. Eles afirmam que entre americanos adultos (de 25 a 40 anos) de classe média houve uma significativa mudança de atitude em relação ao tema, em especial a partir do início da década de 70. O ciúme "normal", encarado como inevitável acompanhante do amor e, portanto, suporte do casamento, passou a ser visto por muitos como uma expressão de fragilidade do relacionamento e de insegurança do cônjuge que o demonstrava portanto, uma ameaça ao sucesso da parceria íntima.
Estudo coordenado pelos psicólogos Elliott Aronson, da Universidade da Califórnia, e Ayala Pines, da Universidade de Berkeley, mostrou que pessoas inseguras são mais propensas a arroubos de ciúme. Minuciosos questionários aplicados a 100 voluntários com idade entre 20 e 50 anos permitiram traçar o perfil do ciumento como uma pessoa que, embora muitas vezes não duvide da própria capacidade de atrair interessados e de iniciar relacionamentos, tem dificuldade de acreditar que possa manter uma relação estável. A baixa auto-estima a leva não só a acreditar que o amado possa traí-lo como o faz esperar constantemente por isso.
Pleno de contradições, num dos extremos o ciúme personifica a aspiração de um modelo de relação humana e o protesto pela perda do compromisso idealizado de fidelidade. Ao mesmo tempo, a convivência é contaminada pela tentativa de imposição de desejos e prioridades de uma pessoa sobre a outra. Por isso mesmo o ciúme tem uma faceta marcante: a tentativa de negação da alteridade, da subjetividade do outro. De maneira aparentemente contraditória, a possibilidade ilusória de realização e completude muitas vezes é projetada na pessoa que se deseja, isto é, no objeto amoroso. Ocorre, ainda que provisoriamente, um movimento de "esvaziamento" do ego. Daí a identificação do ciumento com as sensações de exclusão, desprezo e inferioridade. Outro componente importante nesse quadro é o tormento da imaginação obsessiva. Não raro, a pessoa constrói fantasias paranóides, sentindo-se ameaçada pela perda e pela humilhação. Em muitos casos, a comprovação da traição chega a atenuar o sofrimento.
Um exemplo dessa construção mental paranóica, marcada pela desconfiança, é apresentada no filme Ciúme (1994), de Claude Chabrol, cujo título original, em francês, é L'enfer (O inferno). O protagonista, Paul, é subitamente tomado pela absoluta certeza de que a esposa, Nelly, mulher bonita e extrovertida, mantém relacionamentos extraconjugais. Mesmo quando ela se esforça para evitar eventuais encontros com outras pessoas, o marido interpreta o comportamento como evidência de sua culpa. Transtornado, ele a segue e a agride verbal e fisicamente. Levado ao médico, Paul está certo de que também o profissional tem um caso com Nelly. Seu sofrimento é flagrante. Numa alusão à tortura que se perpetua, Chabrol encerra com a legenda: "sem fim".
Em Ciúme (1993), o protagonista é dominado pela desconfiança paranóica de que a mulher mantém relações extraconjungais
Desde a infância | |
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